"Vós sois o sal da terra. Mas se o sal se tornar insípido, com que se há de salgar? Para nada mais serve senão para ser lançado fora e pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade edificada sobre o monte. Nem se acende uma lâmpada e se coloca debaixo de uma vasilha, mas no candelabro, e ilumina a todos os que estão na casa. Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus".
Mateus 5.13-16
É evidente nas Escrituras que a Igreja é chamada para ser uma expressão de Deus na Terra. No texto acima, Jesus diz que somos o sal da terra e a luz do mundo. E essas figuras nos remetem a dois aspectos da nossa expressão como Igreja: a Influência e o Testemunho.
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Como a Igreja pode realmente impactar a sociedade? |
No início da sua existência vemos a Igreja
"caindo na graça de todo o povo" (Atos 2.47). E todos os dias acrescentava o Senhor à Igreja aqueles que iam sendo salvos, relata o texto. Por causa da sua pregação e da sua vida de amor, perdão e reconciliação, os irmãos gozavam de uma boa imagem e reputação diante do povo em geral, que via neles as virtudes de Deus e as marcas de Jesus. Eles estavam, de fato, sendo o sal da terra e a luz do mundo. Estavam influenciando e brilhando a luz de Jesus no meio daquela geração.
Uma Realidade Espinhosa
Basta sermos honestos para reconhecer que a Igreja hoje, em geral, não goza desta mesma reputação. Uma
pesquisa recente do Instituto Datafolha apontou que outras instituições, como as Forças Armadas e até mesmo a OAB, contam com mais credibilidade do que a Igreja, sendo que a Igreja Católica aparece em terceiro lugar, bem abaixo das primeiras duas, e a Igreja Universal do Reino de Deus (que também foi incluída na lista de opções) ficou apenas com o 11.° lugar, ficando atrás de instituições como a imprensa, os sindicatos, a polícia e até mesmo os bancos.
É claro que foi selecionada para a pesquisa uma igreja evangélica neo-pentecostal, frequentemente envolvida em polêmicas e escândalos - talvez "igrejas protestantes", em um sentido mais amplo, teria tido um resultado melhor. Mas não deixa de ser vergonhoso que instituições humanas como as Forças Armadas e a OAB gozem de mais reputação perante o povo do que a igreja em geral. A relativa boa colocação da Igreja Católica pode-se facilmente explicar pela maioria católica da população que, mesmo não sendo praticante, tende a apontar a instituição representativa de sua crença religiosa como sendo de sua confiança. Uma pesquisa feita exclusivamente entre pessoas que não frequentam uma igreja poderia trazer resultados mais preocupantes ainda. A verdade é que a Igreja em geral, a evangélica em particular, não goza de uma boa reputação na sociedade de hoje, o que a torna culpada de não estar cumprindo com eficácia a sua missão de ser o sal da terra e a luz do mundo.
Odiados de Todos Sereis por Causa do Meu Nome
Alguém poderia dizer: "
mas Jesus também disse que seríamos odiados de todos por causa do seu nome" (Mateus 10.22; 24.9). E isso realmente aconteceu. E ainda hoje acontece. Basta lembrar que cerca de 100 mil cristãos são mortos por ano, ainda nos dias atuais, por causa da sua fé (
veja aqui). Cristãos que são executados, por exemplo, por grupos radicais como o Estado Islâmico. A igreja primitiva, que como dissemos no início, caía na graça do povo, também foi perseguida depois, mas não pelo povo em si, mas pelas autoridades e grupos que tinham seu
status quo ameaçado pela pregação do Evangelho. Observe que Jesus disse que os discípulos seriam odiados "
por causa do seu nome". O ponto é que hoje, muitas vezes, as críticas são direcionadas à igreja não por causa da sua identificação com Jesus, mas por causa de práticas e ensinos focados excessivamente na arrecadação de dinheiro, e por seu envolvimento em escândalos de enriquecimento e mau uso de recursos dos fiéis. Essa não é uma perseguição por causa do nome de Jesus. É motivado por mau testemunho mesmo. Precisamos sempre diferenciar uma coisa da outra.
Origens do Problema
Não tenho a pretensão de oferecer uma resposta completa para o problema, mas creio que podemos fazer algumas considerações pertinentes. Creio que o problema está muito ligado ao que disse o Cardeal Suenes, quando participou, com igrejas carismáticas protestantes, da grande Conferência de Kansas City, no ano de 1977:
"O problema não é que não somos cristãos. O problema é que não somos cristãos o suficiente".
Creio que as causas desta baixa influência e testemunho relevante da Igreja hoje estão ligadas à superficialidade da experiência e do ensino que são oferecidos. Em nome do crescimento massivo, obtido pelo uso intensivo da mídia, têm-se um comprometimento da qualidade do fundamento e da experiência cristã. O Evangelho acaba sendo "modelado", sob medida, para ser uma espécie de resposta espiritual para os problemas sócio-econômicos das pessoas, o que acolhe grande clientela não necessariamente arrependida de seus pecados, desejosas de salvação e de um novo nível de espiritualidade e vida com Jesus. Isso acaba gerando um contingente enorme de pessoas que melhor pode ser definido como "adeptos", ao invés de "discípulos". Lembremo-nos que Jesus comissionou a Igreja para ir "fazer discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado" (Mateus 28.19-20). Mas o ensino predominante hoje na Igreja parece mais orientado a formar "adeptos" ou "membros fiéis", que deem sustentação, principalmente financeira, aos planos de expansão desses ministérios. Jesus não nos mandou formar membros de igreja, mas sim discípulos de Jesus. E isso faz toda a diferença quando se busca uma Igreja que seja verdadeiramente uma influência e um testemunho fiel de Jesus. Que seja o sal da terra e a luz do mundo.
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Nossa missão: ser sal da terra e luz do mundo |
Esse evangelho focado na prosperidade, na solução espiritual de problemas materiais e emocionais, não é em si errado, ele peca por ser incompleto. Deus deseja realmente restaurar a vida financeira e emocional das pessoas, curá-las e abençoá-las, mas esses benefícios devem ser o resultado de uma entrega verdadeira e de uma renúncia da vida passada que não estão sendo enfatizados. E não são enfatizados em nome de um evangelho mais "palatável", que atraia mais facilmente as pessoas em geral. É uma mensagem que encontra grande apelo, ainda mais em uma nação tão cheia de problemas sociais como a nossa, mas não forma, na média, discípulos de Jesus, comprometidos com uma transformação de vida que realmente as torne sal e luz onde vivem.
Os períodos em que a Igreja mais cresceu, em maturidade e comunhão, parecem ter sido aqueles marcados por perseguições, como ocorreu nos primeiros três séculos da Igreja e em outros períodos de oposição, como o dos regimes comunistas na União Soviética e na China. Creio que essa tendência deve-se ao fato de que, nestes contextos, uma vida com Jesus só é possível mediante uma maior e mais profunda entrega, sem reservas, e que implica em um compromisso com Jesus que não se observa em sociedades "cristianizadas" como a nossa.
A Questão da "Praxis"
Max Weber, em seu excelente livro "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo"(1), analisa como as doutrinas protestantes (luteranismo, calvinismo, pietismo e dos anabatistas) influenciaram na formação da mentalidade capitalista a partir do século 16. Enquanto a teologia católica condenava o lucro e o juro, e valorizava o ascetismo monástico (separação do mundo), a teologia protestante "caracteriza-se por uma racionalidade específica, para a qual concorreu a noção de trabalho como vocação e ascese intra mundana, gerada no calvinismo"(2). Ou seja, a doutrina protestante passa a ver o trabalho secular, de cada um, como uma forma de vocação, ou seja, de glorificar a Deus e fazer a sua vontade. Desenvolve-se então o que Weber chama de "ascese intra mundana", ou seja, uma vida de pureza "dentro do mundo" e não "fora dele", como na ascese monástica. E ele demonstra como nas regiões onde prevaleceu a doutrina protestante (Inglaterra, Países Baixos, França e Estados Unidos) o capitalismo encontrou um mais rápido e maior desenvolvimento. Ele estabelece a conexão entre a teologia (o ensino) e a "praxis" (palavra grega que significa "a prática, o modo de fazer as coisas"). Os Puritanos, por exemplo, viam o trabalho e os ofícios como um campo natural onde se exercita a vocação de glorificar a Deus e ao Evangelho de Jesus Cristo. Viam o trabalho, mesmo secular, como algo que dignifica o homem. E aqui chegamos a um ponto onde podemos refletir sobre o ensino e a prática da Igreja atual.
O que a Igreja é hoje, sua prática e modo de vida, ou seja, a sua "praxis", é resultante do seu ensino. Ao contrário da época áurea do calvinismo, pietismo, metodismo e dos anabatistas, por exemplo, temos um ensino muito mais superficial hoje em dia. Isso quando se pode identificar algum padrão e consistência no ensino. E como dissemos, o Evangelho é apresentado na forma de um produto "vendável", e de forte apelo emocional e prático, quase que sob medida, para as necessidades do povo. Não que não se pregue as Escrituras e não se exalte a Jesus, mas o ensino vem sempre limitado a um escopo de interesse circunstancial. Não estamos querendo diminuir a importância dessa pregação, que de uma forma ou de outra, traz as pessoas para mais perto de Jesus, possibilita a sua salvação e tira milhões de pessoas dos vícios e da iniquidade - pessoas que de outra forma estariam perdidas. A nossa análise tem o objetivo de buscar o aperfeiçoamento que todos nós precisamos para o cumprimento eficaz da nossa missão, conforme Mateus 28.19-20.
Se levarmos a sério os ensinamentos de Jesus e dos apóstolos, veremos que o objetivo das Escrituras é a transformação do discípulo, para que ele alcance a maturidade e torne-se uma expressão do Reino de Deus. Tome-se como exemplo o texto de Efésios 4.17 a 5.33. Leia todo esse texto com atenção e perceba como o ensino apostólico conduzia a uma praxis, a um modo de vida que abrange todos os seus aspectos, a forma como vive e se relaciona com o mundo, sua postura, seu comportamento, seus valores, a sua vida familiar, o relacionamento conjugal, a educação dos filhos e o respeito e obediência aos pais. Conduzia a uma vida prática e de inserção na sociedade que produzia uma expressão dos valores do Reino.
Em certos setores da Igreja hoje, temos também uma pregação excessivamente mística e etérea, uma palavra que só parece fazer algum sentido na igreja e entre irmãos, sem conexão clara com o dia a dia das pessoas. Cristãos nesse contexto se tornam pessoas descoladas dos problemas reais à sua volta, vivendo como nefelibatas, causando mais estranheza do que uma expressão real perceptível pelo homem comum. É uma praxis embebida em um emocionalismo sem muito impacto sobre o caráter e vida real destes cristãos, comprometendo a qualidade da sua influência e testemunho.
Em meio a esse mundo corrompido e tão cheio de maldade e insensibilidade, a Igreja deveria ser a reserva moral e ética da sociedade. É necessário que ela se levante com uma nova expressão do cristianismo, que reflita os valores e o caráter de Cristo. Que evangelize e discipule as nações, que seja o sal que influencia e preserva, e a luz que traz revelação e sabedoria.
Roberto Coutinho
(1) Max Weber, "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", 11ª Edição, (São Paulo: Editora Pioneira, 1996 [1904-05]).
(2) Franklin Ferreira, "Uma Introdução à Max Weber e à Obra 'A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo'". Fides Reformata 5/2 (2000).