terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Comunhão e Relacionamentos Como Fatores de Crescimento

"Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor. Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos".


Gálatas 5.13-15

Creio que uma verdade que todos sabemos mas, ao mesmo tempo, não nos cansamos de ignorar, é sobre a importância dos relacionamentos "uns com os outros" no Reino de Deus. Bob Mumford salientou certa vez que seis dos dez mandamentos referem-se a pecados relacionais, ou seja, tratam do nosso relacionamento com os outros - mostrando a importância que isso tem aos olhos de Deus. Porém, a ênfase no indivíduo e seu relacionamento com Deus, sua salvação, sua vitória pessoal, sua felicidade, seus problemas, etc, como resultado do que eu chamo de verticalização da experiência espiritual, têm sido a tônica na maior parte do Corpo de Cristo. E isto em detrimento da comunhão verdadeira e orgânica com outras pessoas na Igreja. Essa, talvez, seja a síntese do maior mal que assola o povo de Deus na atualidade: a superficialidade.
A ênfase no indivíduo e na verticalização da experiência espiritual fazem com que as pessoas vejam as outras na Igreja quase como um mal inevitável, um incômodo à sua experiência pessoal com Deus. Elas achariam melhor viver sua vida espiritual só com a sua Bíblia e Deus, sendo a igreja apenas o "restaurante espiritual" onde ela vai se alimentar. Pode parecer exagero, mas é exatamente assim que as pessoas se comportam em amplos setores da Igreja hoje. Mas não há vida com Deus verdadeira sem o amor prático de uns para com os outros, e as escrituras são abundantes em ensinos nessa direção.

Mesmo aqueles grupos (os poucos) que buscam valorizar mais o aspecto de comunhão e interação entre as pessoas, acabam alcançando pouca realidade e, não raramente, experimentando problemas sérios de relacionamento e divisões. E isto porque o contexto de amor e comunhão não é uma panacéia, mas apenas um ambiente propício ao crescimento, que pode ou não acontecer. Se as pessoas passarem a se reunir em atividades de comunhão mas sem amor, quebrantamento e crescimento, elas podem até "morder e devorar umas às outras", destruindo-se mutuamente, como diz Paulo no texto acima de Gálatas.


Entender que fomos chamados à liberdade, sim, mas para impactar outras pessoas, amá-las e compartilhar o amor de Jesus com elas, é o primeiro passo que se deve dar na direção correta. Desenvolver nas pessoas a consciência de que não deve-se servir dessa liberdade apenas para satisfação pessoal. Os demais conselhos práticos que o apóstolo dá nesse texto são:

1. Não dar ocasião à carne.
2. Servir uns aos outros.

Se continuarmos a ler o texto, do versículo 16 ao 26, veremos outras orientações que ele nos dá no sentido de experimentarmos o melhor de Deus através da comunhão:

1. Andar no Espírito - foco (v16);
2. Na luta entre a carne e o Espírito, inclinar-se para o Espírito - escolhas (v 17);
3. Cultivar o fruto do Espírito (v 18-25);
4. Resistir à vanglória e à inveja. Cultivar humildade (v 26).

Vejam que se entrarmos nesse processo de vencer progressivamente as obras da carne e deixar o fruto do Espírito aumentar, o resultado será crescimento e transformação. E a evidência desse fruto será vista em nossos relacionamentos. Portanto, o que evidência a nossa maturidade é o amor e a qualidade dos nossos relacionamentos, e não o nosso conhecimento, dons ou verticalidade de nossa relação com Deus.

MOVIMENTOS PRÓ E CONTRA A VERTICALIZAÇÃO ESPIRITUAL DA IGREJA

Estive lendo e estudando nos últimos dias sobre a reforma protestante e creio que podemos identificar, já na época, algumas das sementes que ajudaram a moldar essa tendência individual que predomina na Igreja. Em grande parte, as teses de Martinho Lutero demonstravam a fé pessoal em Jesus Cristo como o fator de salvação e não a participação contínua nos sacramentos da Igreja e a realização das obras meritórias para purificação constante e progressiva, como pregava a Igreja Católica. Nessa última, a salvação era o resultado da constante purificação trazidas pela participação nos sacramentos da Igreja e a realização das boas obras. Se ao final da vida essa purificação não tivesse sido suficiente, ainda havia o purgatório para completar essa purificação antes de ir para o céu. Em outras palavras, Lutero tirou a Igreja como a única mediadora e ministradora da salvação, e colocou a fé pessoal (portanto, do indivíduo) na obra redentora de Jesus como o único requisito necessário para a salvação. Ele tira da Igreja e dá ao indivíduo o protagonismo na obtenção da salvação pessoal.

Isso foi bom, por um lado, pois trouxe de volta o entendimento bíblico da justificação pela fé, que realmente é a base do evangelho. Mas trouxe também o esvaziamento do aspecto corporativo da Igreja e a ênfase na experiência individual. A fé pessoal em Jesus, então, e não a Igreja com todos seus sacramentos e rituais, é que estava no centro do processo de salvação. 


Martinho Lutero

O problema da reforma de Lutero é que não foi radical o bastante, apesar de ter representado um passo importante. A princípio, ele queria melhorar a própria Igreja Romana, como atesta a apresentação da Confissão de Augsburgo, em 1530, que foi uma delicada tentativa de conciliar a sua Reforma com o Catolicismo Romano. O documento foi rejeitado, selando-se então o rompimento com Roma. A resistência foi grande. Roma era muito poderosa. Se não fosse o apoio direto dos príncipes e da nova burguesia dos grandes proprietários de terra germânicos, que viram em Lutero a possibilidade de ver-se livre da indesejável interferência de Roma em seus assuntos, e a possibilidade de reaver as muitas terras da Igreja, talvez a reforma tivesse sido totalmente sufocada. Apesar de trazer os avanços conhecidos, a nova Igreja Luterana acabou tornando-se uma espécie de Igreja oficial do império Romano-Germânico. 

Alguns reformadores divergiram de Lutero exatamente por não achá-lo radical o bastante. Lutero manteve o batismo de crianças, por exemplo. Um grupo que buscava uma reforma mais radical separou-se de Lutero e formou o movimento que ficou conhecido como Anabatista. O prefixo "aná" é um advérbio grego que significa, entre outras coisas, "de novo", "outra vez". Anabatismo, portanto, significa "rebatismo". E chamavam-se assim porque praticavam o batismo ou rebatismo de adultos, que podiam conscientemente decidir-se pela salvação em Jesus. Pregavam a importância da experiência pessoal de cada um. Portanto, somente pessoas com idade suficiente para tomar uma decisão consciente podiam se batizadas - um reforço a mais na crescente ênfase no indivíduo. Uma verdade boa, porém, como toda reforma radical, introduzia sementes de desequilíbrio que viriam a se manifestar mais tarde.

É claro que a posição católica sobre o papel da Igreja de intermediação na salvação dos homens não ajudava em nada no entendimento de como a comunhão e o amor entre os irmãos operam a edificação da Igreja. O que estamos dizendo aqui é que a reforma foi um passo importante em direção à restauração das verdades perdidas, mas não ajudou a ir na direção correta no que concerne à comunhão do Espírito. Pelo contrário, introduziu um elemento de individualismo que acabou gerando superficialidade e frieza.

J. P. Spener
Um movimento que surgiu mais de cem anos depois, na segunda metade do século XVII, foi o Pietismo, que nasceu no seio do luteranismo como um esforço de intensificação da fé cristã reformada. Liderado por P. J. Spener (1635-1705) e A. H. Francke (1663-1727), esse movimento teve como texto básico o livro Pia Desideria (1675), escrito por Spener. Desse livro vem o nome Pietismo dado ao movimento. Ele enfatizava o valor da religiosidade prática de caráter íntimo e fervoroso. Mais que a teologia, importaria a "piedade cristã": uma conduta de vida centrada na experiência da fé, sentida mais do que pensada, aliada à mais rigorosa conduta moral. Visava combater a frieza trazida pelo dogmatismo intelectualista dos teólogos luteranos e a ortodoxia doutrinária da Igreja oficial. Foi um movimento muito interessante, que ajudou a trazer mais profundidade, mas mais uma vez enfatizava mais a experiência individual do que a orgânica no Corpo de Cristo.
Os movimentos Pentecostal e Carismáticos também foram fundamentais para o crescimento da Igreja, mas também não trouxeram contribuições relevantes para a restauração da comunhão e da vida orgânica da Igreja, apesar da importância do avivamento e restauração dos dons espirituais que trouxeram.
Menno Simons
No entanto, devemos ressaltar alguns movimentos a partir da reforma que, apesar de não terem restaurado a devida dimensão da comunhão como fator de crescimento e amadurecimento dos santos, foram importantes "incursões" nesse campo, que trouxeram experiências que merecem a nossa atenção. Uma das vertentes do Anabatismo, chamada de pacifista, devido à sua rejeição a qualquer forma de violência (enquanto os outros anabatistas eram bem violentos, envolvendo-se em revoltas armadas contra os seus opositores) buscou um estilo de vida baseado em comunidade, como a observada na Igreja primitiva do livro de Atos e outros textos do Novo Testamento, onde todos repartiam o que tinham e viviam juntos. São exemplos os irmãos morávios (depois chamados de "Huteritas", em referência ao seu líder Jacob Hutter), os Menonitas (em referência a Menno Simons, teólogo e ex padre católico convertido ao Anabatismo) e os Amish (uma dissidência dos Menonitas liderada por Jacob Amman). Eles viviam em comunidades agrícolas, compartilhando seus bens, rejeitando qualquer forma de violência, recusando-se a alistar-se em serviços militares, não aceitando nenhuma forma de controle do estado sobre os seus assuntos de fé, recusando funções públicas, etc, e vivendo uma vida em comunidade e separados ao máximo do mundo. Esses movimentos permanecem até aos dias de hoje, após fugir de sucessivas perseguições para a Rússia e depois para o Canadá, Estados Unidos e mesmo para o Brasil e outros países da América do Sul. Um exemplo são os Menonitas que imigraram da Rússia para Santa Catarina, no Brasil, por volta dos anos 1930, fugindo da perseguição do Comunismo, que começou a confiscar suas terras e mandar muitos Menonitas para os campos da Sibéria, por representarem um obstáculo a implantação das reformas comunistas. Essas comunidades existem até hoje, como a colônia Menonita de Witmarsum, próximo a Curitiba.
Foram movimentos que valorizaram a comunhão no sentido de vida comunitária. Mas foram movimentos restritos que não tiveram muito impacto na Igreja como um todo e nem enfatizavam tanto o aspecto de crescimento trazido pela comunhão, mas sim o valor prático da vida em comunidade e desapego do mundo.
John Wesley
Já o Metodismo, liderado por John Wesley, surgiu no século XVIII na Inglaterra como um movimento de despertamento religioso no interior da Igreja Anglicana, além da ênfase da justificação pela fé, trazia também a ênfase na santificação pela fé, através da disciplina, moral e ética a serem perseguidas através da consagração pessoal. Mas um interessante elemento que introduziu foram as "bands", pequenos grupos de 5 a 10 pessoas que se reuniam para suporte mútuo, discipulado e treinamento, uma espécie de precursor no século XVIII das atuais células. Também no Pietismo haviam sido introduzidos, por J. P. Spener, no século XVII, pequenos grupos de estudos e discussões para gerar maior crescimento espiritual mútuo. Mas foram iniciativas pontuais, que lançaram algumas sementes, mas foram insuficientes para impedir a verticalização da experiência espiritual que veio a caracterizar o cristianismo atual.
CONCLUSÕES
A grande limitação de todos os movimentos de reforma, até hoje, foi a de não conseguir trazer o nível de comunhão e vida no Espírito que se observou na Igreja primitiva, de forma impactante o bastante para revolucionar o testemunho da Igreja no mundo e de produzir genuíno crescimento e santidade no Corpo de Cristo. Esse parece ser o grande próximo passo para levar a Igreja a um novo nível de poder, testemunho, amor e espiritualidade, tirando-a do lamentável quadro atual de individualismo, superficialidade e baixa reputação perante a sociedade.
Roberto Coutinho

domingo, 1 de dezembro de 2013

AS LIÇÕES DE UM SEMÁFORO

Uma pequena crônica que escrevi um dia desses...



Final de tarde. Horário do “rush”. A tempestade se avizinhando da cidade, como é típico nas tardes do final de ano. Todos seguindo rapidamente para algum lugar, como se estivessem fugindo de um mal que os acossa. A pressa é evidente e a impaciência está no ar. Sigo também freneticamente pela avenida, em uma luta implacável contra o relógio. E de repente, me defronto com o destino incontornável que espera a todas as pessoas que vivem e circulam pelas cidades no mundo moderno: o semáforo. Implacável e indiferente à agitação que o cerca. Lá está ele, imponente e taciturno.

Paro resignado e submisso ao sinal vermelho. Não há nada a fazer a não ser parar e se render à sua autoridade. E ao perceber isso, de repente, como um lampejo, começo a pensar nas lições que se pode aprender com um semáforo de avenida em um movimentado final de tarde. Isso mesmo. O velho, frio e imparcial semáforo. Não há quem seja motorista e já não tenha perdido a paciência com as fatalidades e o pragmatismo de um semáforo. E comecei a pensar...

O semáforo é uma das poucas regras que se impõe a uma sociedade avessa ao controle. Poucos têm a ousadia de questionar a sua irritante mania de dizer quem avança e quem pára. É uma das poucas leis amplamente absorvidas pela sociedade. Verde, amarelo e vermelho. Uma coisa rudimentar, primitiva e quase ridícula. Mas tão necessária e poderosamente presente em nossas vidas. E temos a estranha mania de nos render à tácita autoridade que nos é imposta pela luz vermelha do semáforo. Pode nos custar caro a petulância de questionar a sua decisão. Não raro, pode custar a nossa própria vida, sacrificada no altar da rebeldia ou do exibicionismo. Por isso ele é tão eloquente. Ele não diz nada, não tem rosto nem expressão. Não grita nem faz cara feia. Mas a luz vermelha nos impõe peremptoriamente a sua vontade, e como que em um gesto de apego à vida nos deixamos levar por uma súbita rendição ao bom senso.

Diante dele não há diferenças de classe ou privilégios. Diante de um semáforo podemos ver um caríssimo carro importado parando ao lado de uma surrada bicicleta de um morador de favela: ambos resignados e submissos diante da prepotente autoridade da luz vermelha. Não há como corrompê-lo. Não tem como pagar-lhe um cafezinho e ter a vida facilitada. É uma das poucas situações em nossa sociedade em que todos são iguais diante da lei. 

Há outras coisas que um semáforo nos ensina, se o observarmos por tempo suficiente. Ensina-nos que nem sempre a vida nos favorece. Enquanto as portas se abrem para uns, elas se fecham para outros. Nos mostra que nem todos podem vencer ao mesmo tempo. Que uma mesma situação representa a oportunidade para uns e a estagnação para outros. Nunca todos vencerão ao mesmo tempo. A vida não é assim. Sempre há os vencedores e os perdedores. E o semáforo teima em nos ensinar isso, ainda que não estejamos atentos para entender.Mas há o outro lado dessa história que ele, poucos segundos depois, nos ensina. A situação sempre muda. Nenhum mal dura para sempre. Toda crise passa. A oportunidade da luz verde sempre acaba nos sorrindo. De repente, é hora de você prosseguir e outros assistirem ao seu avanço. A sua alternância implacável – verde, amarelo e vermelho – é, no fim, a alternância da vida. Dia e noite. Verão e inverno. Primavera e outono – as estações do ano não em ordem cronológica, mas em pares opostos. A vida sempre insiste em nos ensinar que a alternância é parte integrante de sua melodia – e não há nada que possamos fazer a respeito. O semáforo, se prestarmos atenção, nos ensina a mesma verdade. O sinal vermelho de hoje vai se tornar o sinal verde de amanhã. O segredo é não desistir.

O que mais pode nos ensinar um frio, mecânico e intransigente semáforo? Insisto em pensar que deve haver mais alguma coisa que essa geringonça da vida moderna tenha a nos ensinar. O sinal ainda está vermelho para mim. Acho que a mágica dessa reflexão fez o tempo parar, pois consegui pensar em tudo isso e a teimosa luz vermelha ainda tripudia sobre mim. Mas olho para o fluxo de carros que atravessa à minha frente e, sem explicação nenhuma, vejo que eles vão diminuindo a velocidade. Parecem não aproveitar a vantagem que obtiveram e começam a reduzir a marcha e parar. Até que param. Então percebi que o semáforo não é apenas a dialética do verde e do vermelho. Tem a luz amarela também. Tímida que é, aparece rapidamente e logo dá lugar à vermelha. Sua participação é rápida mas não menos importante. Ela é um aviso. Um alerta. A vedação da luz vermelha nunca se apresenta subitamente, sem o gentil aviso da luz amarela, que tem a nobre missão de nos preparar para a sorte que nos aguarda. O segredo de não sucumbir às luzes vermelhas de nossa vida é prestarmos atenção às luzes amarelas que sempre nos avisam dos perigos. Resistir ao seu sábio conselho pode nos levar a ser pegos de surpresa. Pode até mesmo ser fatal.

De repente o sinal verde acende, os motores aceleram, pedindo impiedosamente para que eu comece a andar. O tempo volta a correr novamente e minha reflexão é interrompida pela vida real. Acelero e volto à minha luta sem fim com essa outra máquina implacável que é o relógio. 
Paro em frente à escola de minha filha, a pego, entramos no carro e saímos em direção à nossa casa. Olho para ela enquanto dirijo e digo: 

- Filha, não é incrível o que um semáforo pode nos ensinar?

Ela olha para mim com a fisionomia de alguém que procura o sentindo de uma piada não entendida e, finalmente, pergunta: 

- O quê? 

Eu penso por um instante e respondo, resignado: 

- Nada não filha. São só umas bobagens que eu andei pensando! E sorri...

Mas continuando o caminho me deparo com outro semáforo vermelho e penso comigo mesmo: “que Deus a ajude a não precisar dos semáforos para aprender as lições que eles me ensinaram nesse final de tarde”...

ROBERTO COUTINHO